mercredi 22 août 2018

Wakanda no MCU: Utopia, Distopia ou tela incompleta?


Antes de tudo, saudações a todos, e WAKANDA FOREVER, irmãos angolanos (e não só). Durante muito tempo esperei pelo filme Black Panther, que prometia um universo totalmente inspirado no continente africano, e teria Wakanda como personagem principal, antes mesmo do herói epónimo. Foi com grande excitação e prazer que fui ao cinema, e deleitei-me com o filme. Inúmeras referências a culturas conhecidas ou próximas de mim, um herói Marvel não só negro mas AFRICANO, com tudo o que isso implica em termos de representatividade num Hollywood cada vez mais criticado pelas suas décadas de condescendência em relação a actores, realizadores e artistas negros de todos os corpos de métier do cinema, que hoje EXIGEM MAIS VISIBILIDADE. Não vou analisar o impacto deste filme na sociedade que me rodeia, apesar de ter sido o primeiro intuito deste texto; também não vai ser uma crítica cinematográfica, exercício que me apraz bastante, e ao qual já me rendi por pelo menos duas vezes para o Entre-Linhas. Não. O que eu decidi fazer aqui foi analisar um pouco mais em profundidade a Wakanda que nos é apresentada como ideal para África, o expoente máximo do afro-futurismo. E digo-vos já que a nota de Wakanda enquanto sociedade é, para mim, negativa. Negativa porque, apesar de ter um propósito extremamente positivo e edificante, desde a sua criação nos anos 60, não deixa de ser uma mistura de clichés, de fantasias pouco elaboradas e que por vezes pecam por EXTREMAMENTE CARICATURAIS e danosas para África e os africanos. Lumumba, Sankara, Mandela veriam Wakanda como uma ditadura, e jamais conduziriam os destinos das suas nações daquela forma. Mas vejamos porquê que, na minha humilde e amadora opinião, a sociedade wakandiana não funciona DE TODO e deve ser repensada ou pelo menos reorganizada/ reapresentada se quiser conquistar um público africano mais exigente.

Política

País governado por uma monarquia absolutista, que consiste num Rei e seu conselho composto pela mãe, um grande amigo do pai, a irmã e alguns chefes de tribo que lhe são leais. As Dora Milaje, autêntico exército de guerreiras ao estilo das Amazonas, constituem a guarda real, principal protecção dos altos dignitários do país. Apesar de tudo, é possível contestar o soberano quando o rei morre. Se alguém se julgar mais digno do trono do que o sucessor "natural" do falecido, tudo o que tem que fazer é... desafiá-lo num duelo que pode levar à morte! Isto foi uma tentativa de incorporar alguma forma de "democracia" na tradição? Falhou redondamente. Apenas deixa o trono aberto para ser tomado por um louco homicida (como aconteceu com o Killmonger, que subiu legitimamente depois de derrotar o T'Challa...). A solução para a tribo que discorda da política implementada por este punhado de pessoas (os Jabari, verdadeiros heróis de Wakanda, a meu ver): EXÍLIO nas montanhas mais inhóspitas do país.

País muito fechado na cena internacional, cultiva meras relações de cordialidade com o resto do mundo, à maneira de um observador, mas não permite entrada de quem quer que seja nas suas fronteiras. É possível pedir visto para Wakanda? Quais são os trâmites legais para se ir lá fazer turismo? Não há. Tendo em conta que se fazem passar por um país de criadores de gado e na verdade são a primeira potência tecnológica do planeta, a vontade de manter o secretismo sobre o seu verdadeiro modo de vida impede que exista uma política migratória qualquer que ela seja. Qualquer país no mundo real que seja próspero a este ponto e se recuse a acolher refugiados de países vizinhos ou longínquos, partilhar o seu conhecimento ou permitir através do comércio um desenvolvimento regional mais equilibrado, é extremamente criticado pela comunidade internacional. Mas até isso é contraditório. Admitamos que eles se fecharam, desenvolveram uma sociedade fantástica com a força dos punhos e o metal milagroso.

Qual é o sentido de mandarem pessoal para o mundo inteiro dar uma de heróis/ rebeldes, mas depois querer se manter neutros para todos os assuntos que não tenham a ver com Wakanda? A Nakia, mercenária/ freedom fighter, que no princípio do filme está numa misão undercover a salvar mulheres e crianças raptados por um equivalente do Boko Haram (apesar da política CLARAMENTE não intervencionista de Wakanda), o pai do Killmonger, que foi para os Estados Unidos ser "espião" e acabou por se solidarizar ao combate dos Black Panther e quis armá-los com vibranium para equilibrar o combate, são os wakandianos com mais consciência política, que compreendem a necessidade de sair daquela autosuficiência fictícia para se juntar ao resto do mundo, mesmo correndo o risco de os seus "segredos" serem disvendados. Até porque já foram, ou o Ulysses Klaw não teria lá ido roubar toneladas de vibranium para vender a terroristas...

Economia

Baseada num único produto raro e com propriedades absolutamente milagrosas (serve para tudo, de armas a medicina passando por fonte de energia and so on and so forth), mas que o governo de Wakanda se recusa a comercializar. Se têm vibranium mas não o vendem, de onde vem a riqueza do país??? É que, tirando a elite (a irmã do rei), parece que MAIS NINGUÉM tem know how para lidar com o dito produto dentro do país. Curiosamente, os terroristas que o roubam sabem exactamente como o trabalhar para tirar o melhor partido das suas propriedades... Vá se lá compreender. A prosperidade vem da política de proteccionismo extremo e exacerbado? Isso tem funcionado tão bem em todos os países que o aplicam (Venezuela)...
OK, vamos assumir que além do metal, a queda do meteorito provocou uma mutação genética qualquer da flora e da fauna daquele lugar (a força da flor que ele come e vira Black Panther vem daí, também, não? fiquei um pouco confuso sobre essa parte, confesso...). Isso explicaria os rino-mutantes, a força sobrehumana do Black Panther (que, curiosamente, é reservada ao único detentor do poder, ingorando o facto que isto poderia ser uma arma útil na DEFESA do país, por exemplo... ou, numa óptica mais mercantilista, como ingrediente de base de um suplemento alimentar para adeptos de crossfit Xtreme). Em quê que isso ajuda o país a ter a tão aclamada prosperidade económica que faz dele o "exemplo a seguir" e a "grande utopia africana"? Vemos uma cidade gigantesca, com arranha-céus aos montes no meio de um vale verdejante, e imaginamos que seja muito, muito, muito povoada, mas por incrível que pareça, quase não vemos os habitantes de Wakanda.

Mas onde está a população? O que faz toda esta gente? Trabalham todos na Sonango... perdão, na Vibramianda, empresa nacional de extracção, exploração e transformação de Vibramium? Que outras coisas produz o país? Vemos criadores de gado, sabemos que os Jabari têm um porto pesqueiro (onde recuperam o T'Challa depois de ser derrotado pelo Killmonger), e já que não têm comércio exterior, isso será para consumo interno. Muito bem, de fome não morrem, é um começo. Mas será realista acreditarmos que a nação tecnologicamente mais evoluída do mundo não tem mais nada a mostrar senão vibranium? Wakanda parece-se muito com os Emirados Árabes, que usaram o produto chave (mas estes pelo menos venderam-no ao estrangeiro, ao contrário de Wakanda) para construir uma riqueza aparente, mas por trás do postal fantástico esconde uma miséria de que não se fala, pois não é de bom tom...

Sociedade

Não a vimos. De Wakanda, tirando paisagens naturais lindíssimas, pouco vemos. Da cidade, vistas aéreas quando os heróis estão a entrar pela barreira holográfica, dois passeios do herói e da sua dulcineia no centro da cidade, e basta. Povo de Wakanda? Não o vemos, quase. Vimos os representantes das tribos principais durante as cerimónias rituais de luta pelo poder (fantástica maneira de escolher quem vai governar um país, diga-se de passagem), vimos o poderio militar em cada um dos conflitos (BP e Infinity War) travados em Wakanda, mas da população, vimos UMA CENA, num mercado onde o T'Challa e a Nakia passeavam. Tudo parece muito afro-futurista, muito hi-tech e tradicionalista ao mesmo tempo, com metro aéreo e terra batida... Mas concretamente, não sabemos como vivem os cidadãos "normais" de Wakanda, fora a família real. Vimos a tribo da fronteira, criadores de gado (aqueles rinocerontes gigantes geneticamente modificados), algumas ovelhas a correr de um lado para o outro e os seus pastores a acenarem à nave do rei que entra no espaço aéreo... And that's about it!

Tudo o que vemos acaba por ser menos importante que tudo o que nos é escondido, pois acreditamos que é a árvore que esconde a floresta. Num estado autocrático autoritário, em que o rei age quase sem consultar ninguém, muito menos permite a existência de uma representação homogénea da sua população nos órgãos de poder, é muito fácil controlar a informação, a imagem do país que passa para o exterior, e esconder a miséria da sua população aos olhos de curiosos... Não estamos a dizer que exista tal miséria (se bem que, pela análise da situação económica, seria o mais realista), apenas gostaríamos de ver como vive o wakandiano "normal", o que trabalha das 9 às 17h, que tem 2 filhos, que enfrenta o trânsito, que vai ao supermercado... alguém NORMAL, que não seja militar ou Realeza... Este filme falhou nesse pormenor maior, e acabamos por concluir que aquela cidade-Estado é um cenário de teatro vazio e inabitado, palco das fantasias megalómanas de uma família Real há muito aborrecida com a própria existência, e que encontra métodos pouco convencionais de passar o tempo!

AH! E para terminar, Wakanda é um país "ligeiramente" muito xenófobo! Para além do fecho de fronteiras à la Trump, alegremente praticado há centenas de anos, todos os brancos são tratados de "Colonizer", o que é curioso da parte de um país que nunca foi colonizado... O chefe da tribu da Fronteira diz clara e inequívocamente que se abrir as portas do país, vai se acolher toda a miséria do mundo, e perder aquilo que faz de Wakanda "the greatest country/ city that ever was or will be". E esta foi a linha de pensamento do rei T'Chaka, e dos seus antepassados antes dele, e foi preciso o "Primo N'Djadaka" vir sacudir um pouco as hostes para se aperceberem que o que a Nakia dizia há anos se calhar até faz algum sentido...

Logicamente, Wakanda não deve ser lida no primeiro grau, até porque o foco do filme não está em apresentar todos os aspectos da sociedade wakandiana, mas usar o país como tela de fundo para o desenvolvimento daquele que é um dos heróis mais míticos da Marvel. Claro que é uma utopia idealista dos anos 60, criada por pessoas que pouco ou nada sabiam de África. O objectivo nunca foi criar uma socedade realista baseada nos mesmos princípios que aqueles que regem o mundo real. Mas acho que, passada a Wakanda Fever (à qual eu não escapei e não me envergonho nem um bocado), uma análise fria da situação mostra-nos que se calhar aquele melting pot de culturas e referências que é a Wakanda dos Comics e que foi transposta para o grande ecrã não é mais do que aquilo: um décor para as aventuras de um ser extraordinário, sem todo o grau de complexidade que podemos esperar de países existentes. O resto da acção da Marvel passa-se em lugares conhecidos e "reais" quando no planeta terra. Mas Wakanda, que levantou tanta expectativa e se tornou o refúgio imaginário da diáspora africana que idealiza um "regresso à terra-Mãe", é tão falha quanto qualquer outro local real ou imaginário no universo Marvel. Afinal de contas, são apenas histórias de super-heróis. Não precisamos de levar tudo tão à letra...

mercredi 15 mars 2017

Criminalização do Aborto em Angola



Os legisladores do meu país estão no século XIX. No Código Penal Português de 1886 (o que estava em vigor em Angola), estão previstas excepções à criminalização do aborto. No texto que deve ir a aprovação dia 23 de Março de 2017, essas excepções (já insuficientes, a meu ver), DESAPARECERAM. É CRIME, ponto.
Eu, como homem, não me arrogo o direito de impor a qualquer mulher o que ela deve ou não deve, pode ou não pode fazer com o seu corpo. Acho que o aborto é um procedimento suficientemente traumatizante para qualquer mulher que se veja obrigada a recorrer à prática, para que se venha CRIMINALIZAR por cima de tudo.
Ninguém aborta por desporto, nem por moda, muito menos por capricho. As circunstâncias que levam qualquer mulher a decidir pôr termo a uma vida que ainda não teve a sua chance são por demais pesadas, devemos apoiá-las, mas acima de tudo devemos fazer o máximo de prevenção, para que seja NECESSÁRIO o menos possível. Que tipo de prevenção se pode fazer pra prevenir o aborto?
- INFORMAÇÃO. Num país com uma esmagadora maioria da população analfabeta, é necessário que a mensagem seja transmitida. A contracepção pode parecer "uma evidência" para quem tem uma vivência urbana, mas Angola não são os bairros urbanos de Luanda. Sem educação sexual, planeamento familiar e disponibilização de meios contraceptivos adequados a preços abordáveis, vamos continuar à deriva.
- EDUCAÇÃO DOS HOMENS. É preciso que homens e mulheres tenham consciência das implicações que têm os seus actos nas suas vidas. Pôr um filho no mundo requer IDEALMENTE um conjunto de condições materiais, psicológicas e afectivas que nem sempre estão reunidas na maioria dos casos em Angola. Porém fuga à paternidade atingiu níveis elevadíssimos na nossa sociedade hoje, e há cada vez mais mulheres a recorrer ao aborto pois não têm os meios de trazer mais um filho ao mundo para cuidarem sozinhas. Não é um crime, é consciência. Crime seria trazer um inocente ao mundo que desde a partida estaria condenado a uma vida de sofrimento, privação e dor. Mas para os homens tomarem consciência das suas responsabilidades, têm que ser ensinados desde pequenos que têm um papel FUNDAMENTAL a desempenhar na sociedade. A ausência de figura paterna em muitos lares é uma das principais causas da crise de valores morais neste país.
- AUMENTO DA SEGURANÇA. As mulheres são, com as crianças, os alvos mais frequentes de agressões de todo o género, e em particular sexual. Ora, eu não percebo como é que alguém que já tenha sofrido um dos piores tormentos que se possa imaginar, pode ser ainda condenada por não querer carregar para sempre a marca desta violação. Se a nossa sociedade fosse mais segura, se se conseguisse conter os agressores sexuais e pô-los fora de condições de agir de maneira PERMANENTE, talvez houvesse menos necessidade de abortos por esta razão hedionda. Mas é mais fácil bater na vítima do que encontrar e punir o agressor.
Depois destes pontos "resolvidos", ainda assim, toda a mulher deveria poder exercer um direito fundamental, o da LIBERDADE DE ESCOLHA. Pode até ter as condições materiais, psicológicas e afectivas, um parceiro pronto a cumprir com o seu papel (e não "ajudar" como se estivesse a fazer um favor), e decidir que não é o momento. É A SUA ESCOLHA.
Digo desde já que se esta lei for para a frente, as mulheres que realmente precisarem não vão deixar de abortar. Vão é recorrer a meios clandestinos, que esses nunca deixarão de existir. Vão pôr a saúde e a vida em perigo, mas vão preferir arriscar do que assumir uma responsabilidade PARA O RESTO DA VIDA para a qual não se sentem preparadas.
Senhoras e senhores legisladores, por favor, avancem para o século XXI, parem com a hipocrisia, deixem de olhar para os vossos umbigos e pensar que só os vossos modos de vida existem ou interessam. Existem neste país realidades que, por sinal, não vos passam pela cabeça. Não tornem a vida das nossas mulheres mais complicada do que ela já é.
Senhoras e senhores deputados, façam prova de bom senso. Deixem de lado o falso moralismo hipócrita que abunda por esta cidade fora, e pensem nos dramas de vida que esta lei vai provocar e/ou agravar caso seja adoptada
.
Atenciosamente,

Um marido, pai, filho, irmão, primo, sobrinho, amigo muito preocupado...

vendredi 20 septembre 2013

Considerações Muito Pessoais Sobre a Minha Angola

Mais uma vez, e para não variar, as notícias vindas de Luanda são preocupantes e tristes. Manifestações, violência, provocação, intimidação. desinformação. Sobretudo desinformação. Entre os orgãos noticiosos que se revelam mudos e outros que reportam com sensacionalismo, ficamos sem saber onde se situa a verdade, se é que apenas uma verdade existe em situações do género. "Violência policial", "manifestações ilegais", "resposta justificada", "tentativa de tumulto", "detenções arbitrárias", "desaparecimento de manifestantes"... Manipula-se o número de manifestantes, uns minimizando, outros exagerando; especula-se sobre o número de vítimas, o seu estado, o paradeiro de alguns, a identidade dos "instigadores da violência", uns dizem bater para manter a ordem, outros dizem ripostar a violência arbitrária e institucionalizada... 

Prezo muito a apolitização do meu blog, e penso ter a capacidade de escrever sobre assuntos de sociedade que a todos dizem respeito sem receber um rótulo. Espero de antemão que não me acusem de estar a fazer política "disfarçada", porque, se o tema que abordo é usado e recuperado para fins políticos por inúmeras pessoas e grupos, eu contento-me de partilhar a minha opinião. Ao fim ao cabo, tudo é, directa ou indirectamente, política. A nossa postura de cidadãos, a expressão das nossas opiniões ou o contributo que damos (ou não) para melhorar uma situação que nos incomoda, revolta ou com que simplesmente discordamos, É POLÍTICA. A nossa pertença a um grupo familiar, categoria socio-profissional, o nosso local de residência, É POLÍTICA. Todos estes elementos, por mais que nos pareçam naturais e desprovidos de qualquer revindicação, definem sem pensarmos sequer, a nossa posição na sociedade, e aquilo que lutamos para preservar ou mudar. Se eu viver num lugar onde tenho água e luz todos os dias, tiver um emprego que me permita sustentar o meu lar condignamente e fazer planos para o futuro, boas escolas para os meus filhos, se tiver, em suma, um nível de estruturação máximo, que razões terei eu para manifestar? 

Lembro-me que em França, nos tempos em que lá estudava, havia muitas greves de professores em zonas onde os liceus tinham uma grande falta de meios materiais e humanos, em zonas onde as dificuldades sociais eram bastante acentuadas. Do alto dos meus 15 ou 16 anos, lembro-me ter tido a seguinte  reflexão: "é normal que o meu liceu não faça greve, aqui não temos problemas". Tínhamos excelentes professores, excelentes instalações, uma biblioteca internacional riquíssima (onde lia o Herald Tribune para ver os resultados da NBA), um ginásio próprio (quando muitos liceus usavam os municipais, e deparavam-se com problemas de calendário de utilização dos mesmos). Aquelas greves não eram nada connosco. Por esta simples reflexão, sem dar por isso tomei uma posição. Muito mais tarde, muitas greves depois (vive la France!) e após muita, muita reflexão  e alguma experiência de vida, compreendi a complexidade da situação, e o porquê de alguns se tornarem solidários com situações que (ainda) não lhes tocavam directamente. Porque o cerne da questão é esse: vermos uma injustiça, onde quer que ela seja, e virar a cara, dizendo: "não é nada comigo" é de certa forma darmos o nosso aval para que ela continue. 

Mas voltemos à nossa querida Angola. De há uns anos pra cá, tem crescido a expressão de um descontentamento com a situação social de muitos cidadãos no nosso País. Esta expressão tem passado, maioritariamente e no caso que interessa aqui analisar, por manifestações, que se querem de cariz pacífico. Manifestações previstas e enquadradas pelo Artigo 47 da Constituição da República de Angola. Quer se queira quer não, as manifestações têm acontecido. é um facto. O Problema é que têm sido marcadas por episódios violentos, que uns imputam aos outros e vice-versa. Os "revus", cujas revindicações contra o Governo no Poder vão quase sempre no sentido de exigir a substituição do Presidente da República, acusam a polícia e grupos "mandados" de darem início às hostilidades, de forma a discreditá-los, e justificar a resposta, já que um dos pressupostos para que estas manifestações aconteçam dentro da legalidade é que elas sejam pacíficas; a polícia acusa os "revus" de serem desordeiros, e terem no seu seio pessoas com comportamentos perigosos e nada pacíficos, que dão início aos confrontos e os obrigam a responder para manter a paz e ordem no espaço público. E com este jogo de atribuição de culpas em forma de espiral infinita, não se apuram verdades, não se resolvem problemas, não se credibiliza nem um lado nem o outro. E quem perde é o povo angolano. 

A este ponto, já pouco ou nada me interessa quem tem razão ou quem está errado. Esta situação não beneficia a absolutamente ninguém. Não vamos construir uma Angola nova se não tivermos todos a mente aberta para a diversidade de situações existentes. Existem situações sociais muito difíceis. Existe um grande fosso entre os ricos e os pobres, e a indignação destes é legítima e normal. Existe uma camada da população que se sente negligenciada, excluída dos planos de crescimento e desenvolvimento do País; que espera mais, muito mais do Executivo em termos de infraestruturas,  saúde, educação. Muitos contestam as escolhas feitas em matéria de investimento, já que estimam que as necessidades mais elementares devem ser as primeiras a receber resposta. Por outro lado, Angola só está verdadeiramente em Paz desde 2002. Angola sofreu com a guerra muitos e graves abalos a todos os níveis, seja nas infraestruturas, capital humano, capacidade de produção. O que tem sido feito, por pouco que pareça ser, tem contribuido para melhorar as condições de vida dos angolanos. E é nesse sentido que temos que levar a carruagem, todos. Cada um contribuindo como pode, com o que pode. Cada um fazendo a sua parte, cada um trazendo a sua capacidade e força de vontade, numa óptica de real união e construção de um futuro melhor para todos.

As carências do nosso País hoje são muitas, e uma das principais, a meu ver, é a de capacidade de escuta. De tão habituados que estamos a viver num esquema de bi-polarização mais imposto do que natural, não encaramos o presente doutra maneira. É o "ou estás comigo ou contra mim". Não há espaço para o "temos ideias, experiências e visões diferentes, mas se queremos o mesmo para o País, vamos tentar unir esforços". Eu não sou apologista da voz única, nem da conivência que leva ao status quo e à estagnação. Mas convenhamos que o diálogo de surdos não faz avançar em nada o País em direcção a uma resolução eficaz e concertada dos problemas. 

Enquanto não nos soubermos ouvir, enquanto não soubermos construir pontes em vez de muros, enquanto não formos capazes de nos pôr no lugar de outrem e conferir alguma legitimidade às suas revindicações, sejam elas quais forem... Enquanto o diálgo se limitar à troca de acusações, insultos, galhardetes e baixezas, e não admitirmos sequer analisar a hipótese posta pelo oponente... Então seremos sempre marionetas em mãos alheias. Marionetas nas mãos daqueles que conseguirem plantar ideias na nossa mente, no nosso subconsciente amedrontado por atrocidades recentes, cometidas por  irmãos contra irmãos... Marionetas nas mãos de potências que avançam escondidas, mas com objectivos bastante definidos, usando o conhecimento que têm de nós, e que por vezes nos falta. O caminho ainda é longo antes de podermos dialogar; pois o diálogo pressupõe OUVIR ANTES DE FALAR. FALAR COM CONHECIMENTO DE CAUSA. ANALISAR O QUE SE OUVE E PESAR O QUE SE DIZ, COMO SE DIZ, A QUEM SE DIZ.

Se formos dialogar com medo de ferir susceptibilidades, ficarão coisas por dizer. Se formos com vontade de rebentar tudo e todos, faltará a melhor forma, que fará com que a mensagem seja ouvida, compreendida, assimilada. Mas antes de tudo, o que nós, angolanos, temos que compreender é que, pouco importa o que nos separa em termos políticos, sociais, económicos, étnicos ou religiosos, não devemos nunca perder de vista que o que nos une é - ou deveria ser -superior a tudo isso. É o nosso cantinho na terra. É a terra dos nossos antepassados. É este milhão duzentos e quarenta e seis mil e setecentos quilómetros quadrados de terra onde temos o DEVER de cohabitar harmoniosamente. É a nossa Nação, o nosso País, a nossa Mãe e Mãe das nossas Mães. Nunca devemos esquecer nos nossos pequenos confrontos, quão grande já é nem quão grande pode ainda vir a ser a NOSSA ANGOLA. Só depende de nós.

jeudi 5 septembre 2013

O (Tardio) Despertar Do Continente Africano



Sou angolano e amante de basquetebol. Por esta razão, os sucessos sucessivos da selecção nacional masculina foram, para mim como para milhões de angolanos, a árvore que esconde a floresta. Os títulos continentais foram vividos com imensa alegria e orgulho por Angola e o conjunto dos países lusófonos, mas a verdade crua e nua é bem mais aterradora do que gostaríamos: o basquete africano está mal. Alguns me dirão que exagero, tendo em conta uma série de condições que, evidentemente, influenciam a capacidade de cada Federação e equipa nacional a profissionalizar-se.


Não obstante qualquer argumento do género, o basquete africano ainda está muito balbuciante, quando teve tempo, oportunidade e momento para se tornar adulto, e assumir a sua inevitável ascensão para o concerto das nações, da mesma forma que já acontece com o futebol.
Tomemos como exemplo a selecção de Angola, a mais emblemática de África durante o último quarto de século. Desde 1989, data da sua primeira vitória no Afrobasket, os Palancas venceram 11 dos 13 campeonatos continentais em que participaram. Sucederam-se gerações de jogadores que fizeram por aplicar a filosofia instaurada ainda nos anos 80 por Vitorino Cunha, então treinador da selecção. Este compreendeu desde cedo que, com jogadores regra geral mais pequenos do que os adversários, Angola devia concentrar os seus esforços numa defesa agressiva e solidária, construindo os seus ataques a partir desta base sólida. Com a aplicação rigorosa deste princípio, e a aparição de alguns talentos individuais notáveis como Jean-Jacques da Conceição, Miguel Lutonda, Joaquim “Kikas” Gomes ou Carlos Morais, o resultado foi visível: 11 títulos continentais, 6 participações aos Mundiais, e 5 aos Jogos Olímpicos. 


 Porém, à medida que o tempo passou, notou-se na melhor equipa africana dos últimos anos (e a fortiori nas suas congéneres) uma dificuldade a ultrapassar um patamar a nível internacional. A melhor qualificação recente de uma equipa africana foi o décimo lugar obtido por Angola no Mundial de 2006 (se não contarmos o 5º lugar do Egipto em 1950, num formato de torneio a 10 equipas); Chegados aos 8º de Final, os Palancas foram derrotados por uma equipa de França que estava ao seu alcance, e com a qual fizeram jogo igual até aos últimos minutos do último quarto, inclinando-se 68-62 num jogo que provocou taquicardia a muitos adeptos, angolanos e franceses… Desconcentração nos minutos derradeiros, acumulação de jogadas individuais para tentar “resolver” o jogo, nervosismo, e finalmente, razões para lamentar que, depois de 15 anos a frequentar regularmente a nata do basquete mundial, se perca um jogo daquela maneira.


Dia 31 de Agosto de 2013, Angola venceu o seu 11º título de campeão africano sénior masculino de basquete. O Resultado final foi 57-40. Além do simples resultado, das vitórias, o que me pareceu mais marcante tanto para Angola como para o conjunto das equipas que vi jogar, foi a ingenuidade táctica. Poucas jogadas pareciam construídas, e nas que o eram, a selecção de lançamentos era amiúde precipitada; a circulação de bola em equipas como Angola é quase obrigatória, mas a Nigéria, que contava com jogadores fisicamente muito potentes, contentou-se de um run-n’-gun que desgastou os adversários mais fracos e morreu diante de adversários melhor organizados. Os lançamentos de três pontos foram usados de maneira abusiva, e mesmo equipas com bons atiradores acabaram os jogos com percentagens aquém das suas reais capacidades.


Tendo isto sido dito, não quero que o leitor fique com a impressão que foi tudo uma catástrofe, e que não existe basquetebol de qualidade em África. Existe E MUITO! Como prova o número crescente de jogadores africanos em clubes europeus e americanos. Alguns deles, como Al Faruq Aminu, Hasheem Thabit, Bismack Biyombo, apesar de terem papéis secundários nas suas equipas NBA, gozam de uma aura positiva nas selecções nacionais, e podem ter um papel importante na transmissão de valores profissionalizantes aos seus colegas. Tal como no futebol, foi preciso haver muitos jogadores africanos a evoluir nos melhores campeonatos europeus para as selecções nacionais beneficiarem dessa experiência e crescerem. No basket, desporto menos publicitado, menos apoiado, envolvendo menos dinheiro em relação ao futebol, este processo está a demorar, mas é quanto a mim inevitável. As federações, os dirigentes desportivos, as equipas técnicas têm que se dar os meios de ser ambiciosos. Mais ambiciosos. Mais do que têm sido até hoje. Para que em breve, se passe de 3 a 6 equipas a participar no Mundial. Para que exista uma verdadeira diversidade, paridade e competitividade no basquete mundial.


( Crédito imagem: "The African Basketball Player", by MrBaid3n. http://www.deviantart.com/art/The-African-Basketball-Player-216638647 )

lundi 1 juillet 2013

O Melhor Sítio do Mundo

O melhor sítio do mundo é o meu quarto. Mais, o melhor sítio do mundo é o Meu Quarto de Infância. Aquele onde transformava os meus medos em quimeras, o edredon em fortaleza intransponível. As paredes tinham a imensidão do Universo, e cada lápis desarrumado era uma história que se escrevia sozinha.  Mesmo partilhado, o Meu Quarto de Infância era o meu território, com fronteiras que só eu compreendia. Em dias de Paz, a partilha era total, as brincadeiras infinitas, mesmo depois do apagar da luz. Quando não, levantava a ponte levadiça e refugiava-me no meu forte, numa torre bem alta, num quarto no fundo do meu quarto dentro do Meu Quarto de Infância. E o espaço tornava-se infinito, e o mundo tomava outros contornos, e resumia-se àquele reduto. 



O melhor sítio do mundo é o Meu Quarto de Infância. E apesar de ter tido muitos, eram todos o mesmo, pois eu reproduzi-o exactamente idêntico, portanto nunca igual, sempre em expansão, quaisquer que fossem as superfícies reais. Não tive o meu quarto sozinho antes dos 20 e muitos anos, logo, tive que me habituar a transportá-lo comigo um pouco para além da infância. Um quarto silencioso, onde reinavam os meus rascunhos, autênticos storyboards da minha vida interior. Cultivei esse hábito, dos rascunhos, dos cadernos de rabiscos, de escritos e devaneios, até os tornar digitais, partilhando-os em blogs, sob uma forma mais "polida" do que aquilo que me permitia quando criança. Mas nunca me desfiz daquilo que mantém o meu quarto de infância intacto. A capacidade de me maravilhar com uma frase, com uma imagem, com uma ideia, e desenrolar o fio até obter algo meu, que me ocupa a mente, que me aquece o peito, e não me deixa esquecer que o quarto, hoje casa, vida, trabalho, responsabilidades, apesar de partilhado com um número incalculável de pessoas e complexidades, não deixou de ser só meu. 

A razão pela qual é o Melhor Sítio do Mundo é porque dentro dele eu posso ser eu mesmo, eu posso ser todos os meus eus! O EU heróico, capaz de todas as bravuras deste mundo, de enfrentar os piores monstros desta vida; o EU assustado, que precisa da protecção calorosa das muralhas dos lençóis, para não ver ou sentir a loucura do mundo lá fora; o EU arrogante, com a certeza própria à infância de ser único e inimitável, com a segurança e confiança naturais ao dono e Senhor do Domínio quase infinito sobre o qual reino; o EU sensível, apaixonado pelo ideal do amor, que se refugia no desenho, na música, na leitura, na introspecção, julgando-se ímpar num mundo  onde as crianças queriam ser adultos muito rápido... 

Algures em mim, está uma porta que me conduz directamente ao Meu Quarto de Infância. Ainda hoje não conheço a fórmula secreta, o encantamento que me catapulta para dentro dele. Um sentimento mais intenso, um medo mais irracional, um segredo que só a mim ouso revelar, e eis-me de novo no meio dos meus brinquedos (antes legos, hoje gadgets), cortado do mundo, enrolado como um feto, reescrevendo o meu prontuário emocional. É um lugar seguro, reconfortante, onde nada me atinge senão a imensidão do meus gritos interiores. E uma vez calados, redesenhados, esmiuçados... volto a pisar terra firme, embriagado da Paz que só a minha ilha deserta me proporciona. Volto ao mundo real, ao mundo dos loucos, que de tão lúcido, me querem fazer acreditar que o louco sou eu...

O Melhor Sítio do Mundo é o Meu Quarto de Infância. Que saudades, mas que saudades do meu...

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(Porque por vezes, quase sempre, a inspiração nos vem dos lugares mais insólitos... Pena que não é  MESMO sempre!)




A Hora do Regresso

É uma pergunta recorrente entre os angolanos fora do País: "quando é que voltas pra banda?"
A mim foi me feita vezes sem conta. Em Paris. Em Lisboa. Em Luanda. A verdade é que o movimento migratório inverteu-se estes últimos 11 anos, e mais ainda nos últimos 6 anos. "O País está bom!", "Volta já, não estás aí a fazer nada!", "A hora de apanhar os bons empregos é agora!"



Tudo isto são argumentos bastante válidos para convencer os muitos angolanos pelo mundo fora que o momento é este. Que o País, apesar das dificuldades que ainda tem, está mais capaz de absorver os seus filhos, e sem garantir, pelo menos propor mais oportunidades de trabalho e realização pessoal do que nos anos de guerra, em que se vivia um dia de cada vez. Em Angola hoje é possível sonhar, a economia vai de vento em poupa, somos o destino de eleição de muito expatriado, alguns até com veleidades um pouco fantasistas, julgando alcançar ali um El Dorado cujos contornos não são assim tão evidentes. E num contexto mundial de crise, onde o estrangeiro onde quer que seja, e sobretudo africano, é visto como o causador de todos os males, aquele que veio "roubar o pão dos Europeus" para falar de situações que conheço, é até uma questão de resgatar alguma dignidade, este retorno à terra que é nossa, onde, bem ou mal, estamos em casa.


Mas a verdade é que todo o angolano que viveu muito tempo longe do País, não deixou de viver. E como tal criou laços, algumas raízes, hábitos, amigos, família... Por isso não devemos, apesar de a tentação ser grande, tomar a parte pelo todo, e achar que existe uma fórmula para voltar para o País em três etapas. Cada um sabe o passivo que tem que gerir para esse regresso se passar da melhor maneira, pois será uma ruptura, quer se queira quer não; cada um sabe a que ritmo tem que o fazer, as condições que tem ou que conseguirá criar no País par voltar a construir uma vida do zero com alguma estabilidade, sobretudo que vai ter que se deparar com dificuldades completamente diferentes daquelas que existem na Europa. O factor do choque psicológico, do despreparo para a "realidade Angolana" por parte de muitos dos seus filhos que voltaram depois de uma longa ausência tem levado a situações pouco agradáveis. Desde sentimentos de revolta e/ou impotência a mudanças drásticas na maneira de pensar e agir (em Roma sê Romano), levando aos mais variados resultados, desde destruturação de famílias a profundas desilusões, depressões e ataques de vária ordem. A Realidade Angolana não é fácil. Não falo só dos problemas de água e luz (que a meu ver, deveriam ser a primeira preocupação a nível de infraestruturas de qualquer País que, como o nosso, aspira ao estatuto de "Gigante" continental); não falo só da sobrelotação da cidade, dos assaltos, da dificuldade de acesso a uma moradia pela esmagadora maioria dos jovens, nem das remunerações por vezes aquém das necessidades reais das pessoas que vivem na cidade mais cara do mundo (tratando-se de Luanda, que não é, como é evidente, o único "pouso" em Angola); falo antes de tudo de um choque de culturas e mentalidades, da noção do "normal" para os locais que não é a mesma de quem viveu muito tempo fora. O que anos de luta "no terreno" faz encarar um buraco na estrada, um atraso, um incumprimento profissional como coisas banais pode fazer qualquer um passar-se da marmita. A noção de pontualidade, a noção de seriedade no cumprimento do dever, a simples noção do valor do trabalho varia muito, e quem vem de fora habituado a planificar a sua vida com base no trabalho vai ter que fazer contas à vida, encontrar esquemas paralelos, negócios e biscates para "completar" o salário. 

Por tudo isto, e por uma mera questão de bom senso, ninguém, muito menos angolanos que viveram muito tempo "cortados" da realidade quotidiana do País, deveria voltar a Angola sem ter pelo menos uma ideia do que lhe espera, e dos meios que vai poder accionar para "se safar". 

Esta manhã partiu para Angola um amigo conhecido aqui em Lisboa. amizade recente, baseada em paixões comuns, interesses comuns, e sobretudo algumas semelhanças de percurso, pensamentos idealistas e vontade de contribuir com "algo concreto" para este mundo, em particular para o nosso pequeno mundo de 1.246.700 km quadrados. Desde que ele me disse que ia voltar que as nossas conversas têm girado à volta disso, do confronto de realidades, da viabilidade do projecto de vida em Angola para pessoas "como nós". Não digo isto no sentido pejorativo, mas a verdade é que o "retornado" em Luanda, sente-se-lhe o cheiro a milhas de distância. Não pela maneira de se vestir, mas pela maneira de andar, de agir, de se movimentar naquele mar infestado de predadores, onde a carne fresca é uma presa fácil. Mas como muitos de nós, esse amigo tem lá apoios, amigos, familiares que lhe vão ajudar a ultrapassar o embate primeiro, o "choque". Porque Luanda já não é aquela que eu deixei uma noite de Outubro de 1993. A vida na nossa capital deu uma volta de 180º em 20 anos, e hoje, eu reconheço precisar de guia lá dentro (e não falo geograficamente). Em todo o caso, apenas posso desejar boa sorte e coragem aos que regressaram, aos que escolheram não fazê-lo, e aos que como eu, estão a preparar-se para tal. 


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lundi 17 juin 2013

O conto das Três Cidades

Quando se ama uma cidade, quando se ama MESMO uma cidade, nunca se deixa de amar. Quaisquer que sejam as circunstâncias, que nos levam a sair ou a voltar a ela, mesmo que ela nos apareça diferente da nossa visão ideal, nunca deixamos de ter por ela sentimentos muito fortes. Mais do que elos, autênticas teias de aço que fazem dela nossa Mãe. Falo das cidades que conheci e de quem sou Filho, de quem serei sempre. Tenho três Mães geográficas, cada uma delas minha à sua maneira. Cada uma delas um marco na minha vida. Cada uma delas tem alegrias e lágrimas, descobertas e momentos de suster a respiração. A beleza pode até estar nos olhos de quem vê; nesse caso, vejo-as perfeitas. Sei bem que não, mas que Filho seria eu se não me mentisse, pensando que são? 





Não me perguntem qual delas prefiro, seria como ter que escolher entre a mão ou o pé esquerdo, entre ver e ouvir. Posso viver sem, mas não quero, e não vou, porque as carrego para toda a parte. 



Mãe que me nasceste, Mãe que me ensinaste, Mãe que me revelaste. Luanda, Lisboa, Paris. Qual delas a mais bela? Qual delas a mais formosa? Qual delas contém o oxigénio mais propício ao meu ser? A ter que combinar, juntava a tua terra vermelha, as tuas sete colinas e as margens do teu Sena para formares o meu idílico Paraíso. Caminharia da Ilha de Luanda à Marginal de Belém, subindo em seguida para Montmartre ver o pôr-do-sol. Sexta feira iria do Elinga à Rue de Lappe num salto, ao som do AfroBeat e do Hip Hop na Bastille, desceria o Bairro Alto até ao Cais do Sodré, de onde um barco me levaria para o Mussulo para passar o fim de semana nas águas límpidas da minha infância. 

Da Fortaleza de São Miguel ao Castelo de São Jorge, imponentes castelos que povoei nos meus sonhos, e nos quais travei épicas batalhas imaginárias, sobre os canhões, dominando a vista sobre o teu mar... Tu que não tens mar, tu que me ensinaste a preguiça dos teus graus negativos, a tua neve repentina que vira lama e verglas, gelo daqueles de escorregar e acordar prá vida. Tu que me  fascinaste com pedra e metal, com a História das tuas ruas, com as tuas Revoluções Iluminadas que mudaram o Mundo. Tu que te levantaste contra a infâmia, com cravos na lapela, no cabelo, na espingarda, tu que libertaste prisões e clamaste o teu desejo de Liberdade, e sacrificaste muitos filhos em nome dEla... 

Cidade de luta, Cidade de vagar; Cidade gigantesca, onde vivo como numa aldeia; Cidade máquina, onde me sinto um parafuso, uma formiga no meio de milhares de formigas que cospe o teu metro em Saint Lazare, preso no caos do teu tráfego que nem tu mais compreendes, mas vais empurrando, hora e meia da Major Kanhangulo ao Alvalade, juro memo, quando for grande só vou andar de mota... E quando finalmente saio do malfadado túnel do Marquês... Sob a copa das árvores da tua larga Avenida, A Avenida, cujo nome escusa de ser citado, desço a pé, mudo de ritmo, curto a tua calçada. Quanto Luxo! Ao fim do passeio, entre lojas e quiosques, o imponente obelisco marca o começo de uma nova aventura. Entre gigantescos repuxos, estátuas e jardins à la française, entre-vejo acima a tua pirâmide de vidro, controverso sinal de modernidade no seio do teu mais Histórico. Modernas as tuas estradas na Marginal, 3 faixas pra ir 3 faixas pra vir, mas só uma de cada para sair e espairecer na Barra do Kwanza, comer uma mariscada regada de Cuca.

Como vês, não sei escolher, escolhi não te distinguir, és todas numa só, és a minha história e as minhas estórias, minha Mãe, minha Filha, meus Espíritos Santos,  por vezes loucos e insanos. A Vida fez vos minhas, o meu coração adoptou-vos. E a cada dia que passa me convenço mais que, quando se ama uma cidade, quande se ama MESMO uma cidade, nunca se deixa de amar.