mercredi 22 août 2018

Wakanda no MCU: Utopia, Distopia ou tela incompleta?


Antes de tudo, saudações a todos, e WAKANDA FOREVER, irmãos angolanos (e não só). Durante muito tempo esperei pelo filme Black Panther, que prometia um universo totalmente inspirado no continente africano, e teria Wakanda como personagem principal, antes mesmo do herói epónimo. Foi com grande excitação e prazer que fui ao cinema, e deleitei-me com o filme. Inúmeras referências a culturas conhecidas ou próximas de mim, um herói Marvel não só negro mas AFRICANO, com tudo o que isso implica em termos de representatividade num Hollywood cada vez mais criticado pelas suas décadas de condescendência em relação a actores, realizadores e artistas negros de todos os corpos de métier do cinema, que hoje EXIGEM MAIS VISIBILIDADE. Não vou analisar o impacto deste filme na sociedade que me rodeia, apesar de ter sido o primeiro intuito deste texto; também não vai ser uma crítica cinematográfica, exercício que me apraz bastante, e ao qual já me rendi por pelo menos duas vezes para o Entre-Linhas. Não. O que eu decidi fazer aqui foi analisar um pouco mais em profundidade a Wakanda que nos é apresentada como ideal para África, o expoente máximo do afro-futurismo. E digo-vos já que a nota de Wakanda enquanto sociedade é, para mim, negativa. Negativa porque, apesar de ter um propósito extremamente positivo e edificante, desde a sua criação nos anos 60, não deixa de ser uma mistura de clichés, de fantasias pouco elaboradas e que por vezes pecam por EXTREMAMENTE CARICATURAIS e danosas para África e os africanos. Lumumba, Sankara, Mandela veriam Wakanda como uma ditadura, e jamais conduziriam os destinos das suas nações daquela forma. Mas vejamos porquê que, na minha humilde e amadora opinião, a sociedade wakandiana não funciona DE TODO e deve ser repensada ou pelo menos reorganizada/ reapresentada se quiser conquistar um público africano mais exigente.

Política

País governado por uma monarquia absolutista, que consiste num Rei e seu conselho composto pela mãe, um grande amigo do pai, a irmã e alguns chefes de tribo que lhe são leais. As Dora Milaje, autêntico exército de guerreiras ao estilo das Amazonas, constituem a guarda real, principal protecção dos altos dignitários do país. Apesar de tudo, é possível contestar o soberano quando o rei morre. Se alguém se julgar mais digno do trono do que o sucessor "natural" do falecido, tudo o que tem que fazer é... desafiá-lo num duelo que pode levar à morte! Isto foi uma tentativa de incorporar alguma forma de "democracia" na tradição? Falhou redondamente. Apenas deixa o trono aberto para ser tomado por um louco homicida (como aconteceu com o Killmonger, que subiu legitimamente depois de derrotar o T'Challa...). A solução para a tribo que discorda da política implementada por este punhado de pessoas (os Jabari, verdadeiros heróis de Wakanda, a meu ver): EXÍLIO nas montanhas mais inhóspitas do país.

País muito fechado na cena internacional, cultiva meras relações de cordialidade com o resto do mundo, à maneira de um observador, mas não permite entrada de quem quer que seja nas suas fronteiras. É possível pedir visto para Wakanda? Quais são os trâmites legais para se ir lá fazer turismo? Não há. Tendo em conta que se fazem passar por um país de criadores de gado e na verdade são a primeira potência tecnológica do planeta, a vontade de manter o secretismo sobre o seu verdadeiro modo de vida impede que exista uma política migratória qualquer que ela seja. Qualquer país no mundo real que seja próspero a este ponto e se recuse a acolher refugiados de países vizinhos ou longínquos, partilhar o seu conhecimento ou permitir através do comércio um desenvolvimento regional mais equilibrado, é extremamente criticado pela comunidade internacional. Mas até isso é contraditório. Admitamos que eles se fecharam, desenvolveram uma sociedade fantástica com a força dos punhos e o metal milagroso.

Qual é o sentido de mandarem pessoal para o mundo inteiro dar uma de heróis/ rebeldes, mas depois querer se manter neutros para todos os assuntos que não tenham a ver com Wakanda? A Nakia, mercenária/ freedom fighter, que no princípio do filme está numa misão undercover a salvar mulheres e crianças raptados por um equivalente do Boko Haram (apesar da política CLARAMENTE não intervencionista de Wakanda), o pai do Killmonger, que foi para os Estados Unidos ser "espião" e acabou por se solidarizar ao combate dos Black Panther e quis armá-los com vibranium para equilibrar o combate, são os wakandianos com mais consciência política, que compreendem a necessidade de sair daquela autosuficiência fictícia para se juntar ao resto do mundo, mesmo correndo o risco de os seus "segredos" serem disvendados. Até porque já foram, ou o Ulysses Klaw não teria lá ido roubar toneladas de vibranium para vender a terroristas...

Economia

Baseada num único produto raro e com propriedades absolutamente milagrosas (serve para tudo, de armas a medicina passando por fonte de energia and so on and so forth), mas que o governo de Wakanda se recusa a comercializar. Se têm vibranium mas não o vendem, de onde vem a riqueza do país??? É que, tirando a elite (a irmã do rei), parece que MAIS NINGUÉM tem know how para lidar com o dito produto dentro do país. Curiosamente, os terroristas que o roubam sabem exactamente como o trabalhar para tirar o melhor partido das suas propriedades... Vá se lá compreender. A prosperidade vem da política de proteccionismo extremo e exacerbado? Isso tem funcionado tão bem em todos os países que o aplicam (Venezuela)...
OK, vamos assumir que além do metal, a queda do meteorito provocou uma mutação genética qualquer da flora e da fauna daquele lugar (a força da flor que ele come e vira Black Panther vem daí, também, não? fiquei um pouco confuso sobre essa parte, confesso...). Isso explicaria os rino-mutantes, a força sobrehumana do Black Panther (que, curiosamente, é reservada ao único detentor do poder, ingorando o facto que isto poderia ser uma arma útil na DEFESA do país, por exemplo... ou, numa óptica mais mercantilista, como ingrediente de base de um suplemento alimentar para adeptos de crossfit Xtreme). Em quê que isso ajuda o país a ter a tão aclamada prosperidade económica que faz dele o "exemplo a seguir" e a "grande utopia africana"? Vemos uma cidade gigantesca, com arranha-céus aos montes no meio de um vale verdejante, e imaginamos que seja muito, muito, muito povoada, mas por incrível que pareça, quase não vemos os habitantes de Wakanda.

Mas onde está a população? O que faz toda esta gente? Trabalham todos na Sonango... perdão, na Vibramianda, empresa nacional de extracção, exploração e transformação de Vibramium? Que outras coisas produz o país? Vemos criadores de gado, sabemos que os Jabari têm um porto pesqueiro (onde recuperam o T'Challa depois de ser derrotado pelo Killmonger), e já que não têm comércio exterior, isso será para consumo interno. Muito bem, de fome não morrem, é um começo. Mas será realista acreditarmos que a nação tecnologicamente mais evoluída do mundo não tem mais nada a mostrar senão vibranium? Wakanda parece-se muito com os Emirados Árabes, que usaram o produto chave (mas estes pelo menos venderam-no ao estrangeiro, ao contrário de Wakanda) para construir uma riqueza aparente, mas por trás do postal fantástico esconde uma miséria de que não se fala, pois não é de bom tom...

Sociedade

Não a vimos. De Wakanda, tirando paisagens naturais lindíssimas, pouco vemos. Da cidade, vistas aéreas quando os heróis estão a entrar pela barreira holográfica, dois passeios do herói e da sua dulcineia no centro da cidade, e basta. Povo de Wakanda? Não o vemos, quase. Vimos os representantes das tribos principais durante as cerimónias rituais de luta pelo poder (fantástica maneira de escolher quem vai governar um país, diga-se de passagem), vimos o poderio militar em cada um dos conflitos (BP e Infinity War) travados em Wakanda, mas da população, vimos UMA CENA, num mercado onde o T'Challa e a Nakia passeavam. Tudo parece muito afro-futurista, muito hi-tech e tradicionalista ao mesmo tempo, com metro aéreo e terra batida... Mas concretamente, não sabemos como vivem os cidadãos "normais" de Wakanda, fora a família real. Vimos a tribo da fronteira, criadores de gado (aqueles rinocerontes gigantes geneticamente modificados), algumas ovelhas a correr de um lado para o outro e os seus pastores a acenarem à nave do rei que entra no espaço aéreo... And that's about it!

Tudo o que vemos acaba por ser menos importante que tudo o que nos é escondido, pois acreditamos que é a árvore que esconde a floresta. Num estado autocrático autoritário, em que o rei age quase sem consultar ninguém, muito menos permite a existência de uma representação homogénea da sua população nos órgãos de poder, é muito fácil controlar a informação, a imagem do país que passa para o exterior, e esconder a miséria da sua população aos olhos de curiosos... Não estamos a dizer que exista tal miséria (se bem que, pela análise da situação económica, seria o mais realista), apenas gostaríamos de ver como vive o wakandiano "normal", o que trabalha das 9 às 17h, que tem 2 filhos, que enfrenta o trânsito, que vai ao supermercado... alguém NORMAL, que não seja militar ou Realeza... Este filme falhou nesse pormenor maior, e acabamos por concluir que aquela cidade-Estado é um cenário de teatro vazio e inabitado, palco das fantasias megalómanas de uma família Real há muito aborrecida com a própria existência, e que encontra métodos pouco convencionais de passar o tempo!

AH! E para terminar, Wakanda é um país "ligeiramente" muito xenófobo! Para além do fecho de fronteiras à la Trump, alegremente praticado há centenas de anos, todos os brancos são tratados de "Colonizer", o que é curioso da parte de um país que nunca foi colonizado... O chefe da tribu da Fronteira diz clara e inequívocamente que se abrir as portas do país, vai se acolher toda a miséria do mundo, e perder aquilo que faz de Wakanda "the greatest country/ city that ever was or will be". E esta foi a linha de pensamento do rei T'Chaka, e dos seus antepassados antes dele, e foi preciso o "Primo N'Djadaka" vir sacudir um pouco as hostes para se aperceberem que o que a Nakia dizia há anos se calhar até faz algum sentido...

Logicamente, Wakanda não deve ser lida no primeiro grau, até porque o foco do filme não está em apresentar todos os aspectos da sociedade wakandiana, mas usar o país como tela de fundo para o desenvolvimento daquele que é um dos heróis mais míticos da Marvel. Claro que é uma utopia idealista dos anos 60, criada por pessoas que pouco ou nada sabiam de África. O objectivo nunca foi criar uma socedade realista baseada nos mesmos princípios que aqueles que regem o mundo real. Mas acho que, passada a Wakanda Fever (à qual eu não escapei e não me envergonho nem um bocado), uma análise fria da situação mostra-nos que se calhar aquele melting pot de culturas e referências que é a Wakanda dos Comics e que foi transposta para o grande ecrã não é mais do que aquilo: um décor para as aventuras de um ser extraordinário, sem todo o grau de complexidade que podemos esperar de países existentes. O resto da acção da Marvel passa-se em lugares conhecidos e "reais" quando no planeta terra. Mas Wakanda, que levantou tanta expectativa e se tornou o refúgio imaginário da diáspora africana que idealiza um "regresso à terra-Mãe", é tão falha quanto qualquer outro local real ou imaginário no universo Marvel. Afinal de contas, são apenas histórias de super-heróis. Não precisamos de levar tudo tão à letra...

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