lundi 28 novembre 2011

Desmobilizados...

O dia mais duro é o seguinte...

Não mais se combate com armas, mas a violência permanece, palpável, pesando no oxigénio que se respira.
Armas caladas, botas enlameadas, colunas vergadas sob o peso crescente da desilusão.

Asfixia normal, diz-se, numa geração nascida sob pressão.
Outras guerras sem mercê se travam, sacando suspiros de uma dor que nenhuma bala é capaz de infligir.



Filhos de uma geração de Idealistas, ninguém os preparou para tão dura realidade; e os que acreditaram absorver para si os males, deixando campo aberto para a Esperança, hoje choram sem Lágrimas o medonho Futuro dos seus...

Desencantados soldados desmobilizados de um exército disperso e amnésico, que esqueceu o porquê da sua luta...

mercredi 23 novembre 2011

NÃO POSSO COM O LIVRO DO KALAF...

Glenn
pelos nossos kotas criativos
Kalaf
17/11/11*

...pelo único e simples facto que GOSTARIA DE TER SIDO EU A ESCREVÊ-LO! É que, a bem dizer, o livro está muito forte!

Começa pelo título, uma autêntica provocação lançada aos editores, leitores e todos os outros "ores" que o virem na prateleira de uma livraria. Quem é que ele se julga, para limitar o seu livro aos meninos de cor? Ou serão as estórias de amor nele retratadas que lhes são específicas? Mas que raio quis ele dizer com «Estórias de Amor Para Meninos de Cor» ? Será que ele se deu conta que no livro dele quase (só lá bem prá frente, e mesmo assim não sei se é de amor que se trata) não há qualquer tipo de alusão a um qualquer envolvimento amoroso, dado que quase não há personagens DE TODO?  Que his/estória vem a ser esta? 

Aqui, as estórias acabam por falar de um amor maior do que a mera paixão que liga dois indivíduos; fala do amor pela cidade de Lisboa, por Berlim, por Londres, pelas viagens, pela descoberta, pela(s) língua(s), pela música, pela moda, pelo estilo, pela art de vivre, pela própria vida...

 Este livro é, a meu ver, o ponto de vista de um cosmopolita, de um viajante no espaço e no tempo. Entre memórias e impressões, poesia em prosa e interrogações, duras realidades e divagações, Kalaf Ângelo demonstra que, apesar de ser um angolano com muito orgulho, é antes de tudo um cidadão do mundo. O seu olhar crítico, enriquecido pela sua experiência, é muito subtil. Um raio X do seu mundo tão particular, é o que nos propõe nestas saborosas páginas de crónicas, à partida escritas para o Público, agora tornadas acessíveis a todo um outro público... Não é o Kalaf dos Buraka nem da Enchufada, não é o Kalaf de Benguela nem de Lisboa, não é o Kalaf de Luanda... eu diria que nestas estórias entrevê-se um Kalaf visto de dentro. Entramos no seu quarto, na sua sala, na sua cozinha, na sua mala, e com ele somos transportados um pouco por toda a parte, desde a imobilidade preguiçosa de um Feriado aos animados palcos do mundo inteiro, passando pelos bancos inconfortáveis da sala de espera do SEF... 

Mais do que um compêndio de escritos publicados individualmente durante três anos, este livro é... UMA ATITUDE!

E para concluir redundantemente, exprimo o meu sentimento em relação a esta obra com um dos meus aforismos preferidos:

Oscar Wilde: "I wish I had said that."
Whistler: "You will, Oscar; you will."









*E se não o disse/ escrevi, fica o consolo do autógrafo, que em si só faz sentido quando autenticado pelos poucos segundos de prosa trocados, que originaram a sua singularidade. E se não te disse na hora pois nada sabia dos teus escritos, hoje, percorridas dezenas de páginas da tua vida interior, envio-te, amigo e errante colega, os meus sinceros parabéns, e um grande, grande

OBRIGADO, SIM!

mercredi 16 novembre 2011

Embriagado Poeta...


Certo tempo, em certa sanzala, certo Homem deambulava. Como ausente de si mesmo, proferindo palavras apenas para si compreensíveis. Ou se calhar só por si escutadas... Grande orador descredibilizado pelo seu hirsuto aspecto, pelos seus imponentes andrajos, pela sua fiel companheira de vidro já sem rolha, mas jamais vazia... Apesar de tudo, era ainda assim portador de uma certa majestade, marca de idos tempo em que se supõe que tenha sido "gente"; Grande postura de filósofo errante, olhos brilhantes como cobre, estranhamente acesos numa figura há muito apagada... O espesso casco do calcanhar acusava o cansaço de inúmeras travessias pelo mundo fora. Deleite das crianças do musseque, personificação convincente de um papão meio temido meio zombado, lá ia ele, destilando enigmas aos quais ninguém prestava atenção, pois invariavelmente acompanhados de um bafo considerado propício ao devaneio.


"A Alma!... a reconstituída Alma, incompleta... gema concêntrica do ser... apenas almeja aquilo de que carece... Tinheis razão, grande Aristófanes! sem Ela, Ele não é! O que é Ela se dEle ausente? e nem Deus nem Diabo, nem Homem... saberão satisfazer... este infindável poço... Gentil não sei... mas quando te partiste, oh! Alma!... aquando da tua Génese... Tornaste o caminho em tormento... como outros em vinho transformaram o lamento..."


O que podia ele esperar de tal verborreia, senão divertidas gargalhadas, provocações infantis e um camuflado escárnio por parte dos adultos?...
Não era raro que, para contrariar o tédio, algum vizinho juntasse um séquito para interrogar o esfarrapado erudito a propósito de tudo e do seu contrário. As suas respostas provocavam sempre a mais pronta hilaridade dos que, não alcançando o sentido mais profundo de suas palavras, as tomavam por demência e senilidade.


Mas eis que um dia, em nada diferente dos outros, se calou a voz do venerável ancião.Ele levantou-se de sua cubata, e cumpriu a sua rotina como se nada fosse, deambulando entre as poças, contemplando as mais grotescas cenas da vida da sanzala, desde lutas de vizinhas a fuga de caloteiros, de brincadeiras de criança a ruidosas disputas de casais. Ele lá estava, alma penada entre os vivos, presença apenas traída pelo forte odor a álcool exalado, pois o habitual discurso secara como riacho no deserto... Nos primeiros dias ninguém notara, mas passadas semanas, tornou-se gritante a ausênca dos seus poemas sem sentido, das suas digressões halucinadas, dos seus discursos em línguas alheias...


"Mais velho, mais velho! Nunca mais falaste aquelas tuas coisa..."


Como única resposta, um olhar perdido no horizonte... Por vezes o esboço de um sorriso. E meses se passaram, e o mendigo permaneceu mudo. Como se o desperdício de verbo durante anos o tivesse definitivamente remetido ao silêncio. Como se, cansado, depois de nunca ter economizado na fala, as suas cordas vocais se tivessem esgotado. E a sanzala ressentiu-se da mudança. Outrora alegre, ritmada pelas divagações daquele que se tornara o seu ilustre cartão de visitas, foi toda a comunidade que, com o seu silêncio, perdeu a fala...


Passaram-se anos assim, antes que o velho, que compensava em entrada de álcool o que não mais saía de palavras, morresse sozinho, longe dos olhares que entretanto acabaram por dele se desviar. Os vizinhos, que o conheceram naquele musseque durante mais de vinte anos, tiveram ali a primeira ocasião de entrar na sua humilde cubata, e aí descobriram vestígios de outra vida. Não havia metro quadrado de parede que não tivesse um livro, não se dava um passo sem pisar numa folha manuscrita, numa caligrafia impecável, de senhor importante, incompatível com o lugar onde jazia inanimado no meio de tais tesouros...


O que diziam tais papéis que pareciam importantes, jamais se saberá. É que nenhum dos muitos vizinhos, que sempre fizeram pouco caso do excêntrico avôzinho, tinha instrução suficiente para decifrar os muitos escritos. Alguns concluiram que eram estudos importantes de algum doutor que, de tanto pensar, perdeu a razão. Outros ainda falaram de Memórias de algum ilustre personagem que ele teria sido, como atestavam as fotografias amareladas de sua juventude que aqui e ali foram encontradas, com rabiscos, datas e carimbos... Era um homem estudado, um homem esclarecido, um homem "que não pertencia àquele musseque", foi a única conclusão unânime dos moradores daquele bairro de lata. E secretamente, a maioria lamentou não ter dado ouvidos às muitas e enigmáticas palavras que ele quotidianamente dispersava na poeira quente daquela que foi a sua última morada...

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‎"embriagado Poeta que fala de amor na sanzala
embriagado Poeta que fala de amor na sanzala
ele fala ninguém escuta, ele cala lhe perguntam...
ele fala ninguém escuta, ele cala lhe perguntam..."

Paulo Flores, in Boda