Certo tempo, em certa sanzala, certo Homem deambulava. Como ausente de si mesmo, proferindo palavras apenas para si compreensíveis. Ou se calhar só por si escutadas... Grande orador descredibilizado pelo seu hirsuto aspecto, pelos seus imponentes andrajos, pela sua fiel companheira de vidro já sem rolha, mas jamais vazia... Apesar de tudo, era ainda assim portador de uma certa majestade, marca de idos tempo em que se supõe que tenha sido "gente"; Grande postura de filósofo errante, olhos brilhantes como cobre, estranhamente acesos numa figura há muito apagada... O espesso casco do calcanhar acusava o cansaço de inúmeras travessias pelo mundo fora. Deleite das crianças do musseque, personificação convincente de um papão meio temido meio zombado, lá ia ele, destilando enigmas aos quais ninguém prestava atenção, pois invariavelmente acompanhados de um bafo considerado propício ao devaneio.
"A Alma!... a reconstituída Alma, incompleta... gema concêntrica do ser... apenas almeja aquilo de que carece... Tinheis razão, grande Aristófanes! sem Ela, Ele não é! O que é Ela se dEle ausente? e nem Deus nem Diabo, nem Homem... saberão satisfazer... este infindável poço... Gentil não sei... mas quando te partiste, oh! Alma!... aquando da tua Génese... Tornaste o caminho em tormento... como outros em vinho transformaram o lamento..."
O que podia ele esperar de tal verborreia, senão divertidas gargalhadas, provocações infantis e um camuflado escárnio por parte dos adultos?...
Não era raro que, para contrariar o tédio, algum vizinho juntasse um séquito para interrogar o esfarrapado erudito a propósito de tudo e do seu contrário. As suas respostas provocavam sempre a mais pronta hilaridade dos que, não alcançando o sentido mais profundo de suas palavras, as tomavam por demência e senilidade.
Mas eis que um dia, em nada diferente dos outros, se calou a voz do venerável ancião.Ele levantou-se de sua cubata, e cumpriu a sua rotina como se nada fosse, deambulando entre as poças, contemplando as mais grotescas cenas da vida da sanzala, desde lutas de vizinhas a fuga de caloteiros, de brincadeiras de criança a ruidosas disputas de casais. Ele lá estava, alma penada entre os vivos, presença apenas traída pelo forte odor a álcool exalado, pois o habitual discurso secara como riacho no deserto... Nos primeiros dias ninguém notara, mas passadas semanas, tornou-se gritante a ausênca dos seus poemas sem sentido, das suas digressões halucinadas, dos seus discursos em línguas alheias...
"Mais velho, mais velho! Nunca mais falaste aquelas tuas coisa..."
Como única resposta, um olhar perdido no horizonte... Por vezes o esboço de um sorriso. E meses se passaram, e o mendigo permaneceu mudo. Como se o desperdício de verbo durante anos o tivesse definitivamente remetido ao silêncio. Como se, cansado, depois de nunca ter economizado na fala, as suas cordas vocais se tivessem esgotado. E a sanzala ressentiu-se da mudança. Outrora alegre, ritmada pelas divagações daquele que se tornara o seu ilustre cartão de visitas, foi toda a comunidade que, com o seu silêncio, perdeu a fala...
Passaram-se anos assim, antes que o velho, que compensava em entrada de álcool o que não mais saía de palavras, morresse sozinho, longe dos olhares que entretanto acabaram por dele se desviar. Os vizinhos, que o conheceram naquele musseque durante mais de vinte anos, tiveram ali a primeira ocasião de entrar na sua humilde cubata, e aí descobriram vestígios de outra vida. Não havia metro quadrado de parede que não tivesse um livro, não se dava um passo sem pisar numa folha manuscrita, numa caligrafia impecável, de senhor importante, incompatível com o lugar onde jazia inanimado no meio de tais tesouros...
O que diziam tais papéis que pareciam importantes, jamais se saberá. É que nenhum dos muitos vizinhos, que sempre fizeram pouco caso do excêntrico avôzinho, tinha instrução suficiente para decifrar os muitos escritos. Alguns concluiram que eram estudos importantes de algum doutor que, de tanto pensar, perdeu a razão. Outros ainda falaram de Memórias de algum ilustre personagem que ele teria sido, como atestavam as fotografias amareladas de sua juventude que aqui e ali foram encontradas, com rabiscos, datas e carimbos... Era um homem estudado, um homem esclarecido, um homem "que não pertencia àquele musseque", foi a única conclusão unânime dos moradores daquele bairro de lata. E secretamente, a maioria lamentou não ter dado ouvidos às muitas e enigmáticas palavras que ele quotidianamente dispersava na poeira quente daquela que foi a sua última morada...
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"embriagado Poeta que fala de amor na sanzala
embriagado Poeta que fala de amor na sanzala
ele fala ninguém escuta, ele cala lhe perguntam...
ele fala ninguém escuta, ele cala lhe perguntam..."
Paulo Flores, in Boda